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O Mestre

Publicado em Domingo,

Imagem de O Mestre

ator: Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Laura Dern, Ambyr Childers, Rami Malek, Jesse Plemons, Kevin J. O'Connor, Christopher Evan Welch, Madisen Beaty

Um Homem à Deriva no Pós-Guerra

Freddie Quell é um veterano da Segunda Guerra Mundial que carrega no corpo e na mente as marcas da batalha. Ele sobreviveu aos horrores da guerra, mas a paz parece ser seu maior inimigo. Volta para casa sem rumo, emocionalmente instável, mergulhado em álcool, raiva e desejos confusos. Salta de emprego em emprego — como fotógrafo de shopping, trabalhador rural, marinheiro — e em cada um, algo explode. Seu comportamento autodestrutivo e sua obsessão por misturas caseiras de álcool o tornam imprevisível. Freddie não sabe quem é, nem o que busca. Ele apenas vagueia, como um animal ferido esperando o golpe final.

A Aparição do Mestre

No auge de sua crise, Freddie embarca clandestinamente em um iate durante uma festa. É ali que conhece Lancaster Dodd, um homem carismático, articulado e misterioso, que logo se apresenta como líder de um movimento filosófico conhecido como “A Causa”. Dodd é magnético, fala com convicção, como um profeta ou cientista iluminado, e diz ser capaz de libertar o ser humano de suas memórias traumáticas. Freddie, quebrado e agressivo, é o oposto de Dodd — mas o Mestre o acolhe. Assim começa uma relação intensa, ambígua e fascinante, como um experimento psicológico em tempo real.

A Técnica da Processação

Dodd submete Freddie a uma série de sessões de “processação” — um tipo de interrogatório hipnótico com perguntas repetitivas, que buscam cavar até o âmago da alma. Durante essas sessões, Freddie vai aos poucos se abrindo, revelando seus medos, traumas, desejos reprimidos e ressentimentos. Dodd insiste que o método pode curá-lo. As perguntas se tornam marteladas: “Você já fez algo de que se arrepende?”, “Você já teve contato com seres de outro tempo?”, “Você é uma fera ou um homem?”. Enquanto isso, o rosto de Freddie, tenso e suado, pulsa como um campo de batalha interno.

Um Elo de Obsessão e Fascínio

A relação entre os dois não se limita ao método. Dodd parece genuinamente intrigado por Freddie, talvez até encantado por sua natureza selvagem e espontânea. Freddie, por sua vez, começa a ver em Dodd uma figura paternal, um guia, um salvador. Mas essa admiração logo se contamina com ciúmes, manipulação e dominação. Os dois se complementam como opostos que não podem coexistir, mas tampouco se afastar. Enquanto Dodd quer moldar Freddie à imagem do “homem ideal da Causa”, Freddie parece testar os limites do Mestre, como um animal recusando a coleira.

A Matriarca da Causa

Peggy Dodd, a esposa de Lancaster, é uma figura enigmática e poderosa por trás do movimento. Embora sempre fale suavemente, seus olhos nunca dormem. Ela enxerga em Freddie uma ameaça à estabilidade da Causa. Para ela, a devoção precisa ser total, sem desvios, sem desequilíbrios. Ela pressiona Lancaster a controlar Freddie, ou descartá-lo. Mas Dodd hesita. Há algo em Freddie que ele não consegue largar — talvez pela liberdade que o discípulo representa, ou talvez porque vê nele o reflexo de algo que perdeu. A tensão entre Peggy, Freddie e Lancaster cresce como uma chama prestes a sair do controle.

O Mundo de Lancaster

Conforme a narrativa avança, mergulhamos nos círculos da Causa: eventos públicos, livros publicados, fiéis devotos e críticos ferozes. Dodd se apresenta como um visionário, desenvolvendo um segundo livro, “A Divulgação Causativa”, onde afirma que almas humanas são eternas e que podem ser transportadas por milhares de anos. Os conceitos da Causa misturam ciência, espiritualidade e ficção. Alguns veem genialidade. Outros, charlatanismo. E no meio disso, está Freddie, cada vez mais impaciente com as regras e cerimônias, mas também incapaz de se desligar. Ele se torna o cão de guarda de Dodd — violento, impulsivo, leal.

O Conflito com a Realidade

Enquanto viajam por diversas cidades promovendo a Causa, os conflitos se intensificam. Em uma entrevista pública, Dodd perde o controle diante de uma pergunta provocativa e grita que o ceticismo é uma doença. Freddie parte para cima do entrevistador. Em outra ocasião, é preso após agredir um homem que duvidava das doutrinas de Dodd. Dentro da cela, Freddie berra, quebra tudo, se debate como um animal enjaulado. Dodd, na cela ao lado, permanece calmo, até soltar uma frase que ecoa em toda a narrativa: “Ninguém além de mim vai cuidar de você.” Mas será que é cuidado ou posse?

A Memória de Doris

Em meio à turbulência, Freddie relembra uma garota de seu passado, Doris, por quem teve um amor puro antes da guerra. Ele tenta escrever para ela, mas descobre que ela se casou. Esse fio de memória é como uma âncora que o prende a uma ideia de si mesmo que talvez nunca tenha existido. Doris é símbolo de uma inocência perdida, de uma vida que poderia ter sido. Ao buscá-la, ele busca a si mesmo. Mas o tempo passou, e nem mesmo o amor pode ser reconquistado. Freddie está condenado a se mover sempre para frente, como uma onda que não volta.

A Ruína da Devoção

A viagem com Dodd termina em desilusão. A Causa já não oferece sentido para Freddie, apenas repetição, controle e falsidade. Peggy intensifica sua pressão: ou Freddie se submete totalmente, ou deve partir. Lancaster, dividido entre a razão e o afeto, pede a Freddie que fique, que se transforme. Mas o discípulo está pronto para romper. Depois de uma última noite de sonho, onde ambos se reencontram num deserto imaginário, Freddie acorda em outro lugar, longe, livre e só. A devoção cede lugar à dúvida. O elo entre Mestre e discípulo se rompe, deixando uma ferida aberta nos dois.

A Última Processação

Em uma cena final simbólica, Freddie encontra uma mulher e tenta aplicar nela a técnica da processação, como se testasse se aprendeu algo, se internalizou o método. Mas é tudo uma paródia. Ele sorri, ela ri, e o jogo se desfaz em absurdo. É um fim ambíguo. Freddie não se curou, mas talvez tenha se libertado. Ou talvez esteja apenas começando uma nova jornada cíclica de fuga, desejo e perda. O que resta é o silêncio — e a pergunta: o que, afinal, significa ser livre?

Uma Dupla Magnética e Devastadora

“O Mestre” é impulsionado por duas atuações extraordinárias: Joaquin Phoenix, que entrega um Freddie quase animalesco, curvado, impulsivo, com um olhar perdido entre o trauma e a esperança; e Philip Seymour Hoffman, em uma performance magistral como Lancaster Dodd — cheio de pausas, intensidade e uma fé inabalável na própria retórica. Cada cena entre os dois é um duelo de vontades, um embate entre instinto e controle. É impossível desviar os olhos da tela quando eles estão juntos. Há ali um vínculo que ultrapassa palavras. Há destruição e desejo. Há dependência e repulsa. Há arte pura.

A Direção de Paul Thomas Anderson

Paul Thomas Anderson não oferece respostas. Ele constrói um filme como se esculpisse mármore, camada por camada, sem pressa, sem concessões. A fotografia é hipnótica, com tons nostálgicos e movimentos lentos que lembram pinturas vivas. A trilha sonora de Jonny Greenwood é dissonante, inquietante, muitas vezes mais emocional do que qualquer diálogo. Cada plano é calculado, cada silêncio é cheio de significado. Anderson observa seus personagens com empatia, mas sem piedade. “O Mestre” não é um filme sobre seitas. É um estudo sobre a alma humana em busca de um lugar — mesmo que esse lugar seja uma ilusão.

Temas que Ecoam

“O Mestre” fala sobre fé, controle, manipulação, trauma, dependência e o eterno vazio que o ser humano tenta preencher. A Causa pode ser uma metáfora da Cientologia, mas vai além disso: simboliza qualquer estrutura que promete sentido onde só há caos. Freddie representa o caos; Dodd, a tentativa de ordem. Um quer domar, o outro quer fugir. E nesse conflito, vemos espelhadas as próprias perguntas que movem o espectador: até onde vamos para encontrar um mestre? Até quando suportamos ser discípulos? Quando a verdade se torna insuportável, será que a mentira oferece alívio?

Um Filme Que Nunca Acaba

“O Mestre” não termina quando sobem os créditos. Ele permanece ecoando por dias. Suas cenas são como sonhos mal resolvidos, suas frases voltam em momentos aleatórios. Não é um filme fácil, nem feito para ser. É uma obra que exige entrega. Há quem saia confuso. Há quem saia transformado. Mas ninguém sai ileso. Anderson nos oferece não uma narrativa tradicional, mas uma experiência psíquica, emocional, quase espiritual. E no fim, entendemos: o mestre pode estar fora, pode estar dentro — ou pode ser apenas o reflexo da nossa própria necessidade desesperada de direção.