O Doador de Memórias
Publicado em Segunda-feira,

ator: Jeff Bridges, Meryl Streep, Brenton Thwaites, Alexander Skarsgård, Katie Holmes, Odeya Rush, Cameron Monaghan, Taylor Swift, Emma Tremblay
Um Mundo Sem Dor — E Sem Escolhas
Em um futuro aparentemente perfeito, O Doador de Memórias (The Giver) nos apresenta a uma sociedade que erradicou o sofrimento, a guerra, as emoções intensas e até mesmo as cores. Tudo em nome da ordem e da paz. As pessoas vivem em uma comunidade rígida, onde cada aspecto da vida é controlado: do que comem ao que sentem, do trabalho que exercem às palavras que usam. Neste mundo asséptico, não há liberdade — e, sobretudo, não há memória.
A história acompanha Jonas, um jovem prestes a completar 16 anos, idade em que os membros da comunidade recebem a designação da função que exercerão pelo resto da vida. Até este ponto, Jonas vive confortavelmente dentro do sistema. Ele tem uma família “atribuída”, amigos com quem compartilha momentos leves, e segue todas as regras sem questionamento. Mas algo dentro dele sempre sentiu que havia algo além da “Samenez” — esse é o nome dado à suposta igualdade universal promovida pelo governo.
A Cerimônia da Escolha
A cerimônia de atribuição das profissões é um dos momentos mais aguardados por todos os adolescentes. Cada jovem espera receber uma função que combine com seus talentos, observados desde a infância pelos anciãos da comunidade. Enquanto seus amigos Fiona e Asher são designados para áreas comuns, Jonas é surpreendido por algo incomum: ele foi “selecionado” — não apenas designado — para se tornar o novo Recebedor de Memórias.
Este cargo é raríssimo e altamente respeitado. A comunidade só permite a existência de um Recebedor por vez, e seu papel é guardar todas as memórias da humanidade antes da Samenez: dor, alegria, medo, amor, guerra, liberdade, tudo o que foi apagado da história coletiva. Apenas o Recebedor pode acessar essas lembranças — ele carrega o fardo da verdade, para que os outros não precisem suportá-lo.
O Encontro com o Doador
Jonas é levado a conhecer o atual Recebedor, um homem velho, sábio e solitário que passa a ser chamado simplesmente de O Doador. Ele será responsável por transmitir a Jonas todas as memórias do mundo que existiu antes — memórias que foram suprimidas para manter a ordem. O processo de transferência é intenso: o Doador coloca as mãos nas costas de Jonas, e ele imediatamente começa a ver e sentir experiências que jamais imaginou.
A primeira memória é suave: andar de trenó na neve. A sensação do frio, da velocidade, da liberdade. Jonas ri, sente alegria genuína, algo novo para ele. Mas, com o tempo, as memórias se tornam mais profundas e dolorosas: fome, guerra, perda, desespero. Jonas experimenta a dualidade da existência humana, o preço da liberdade e da emoção. E com cada memória, seu olhar sobre a comunidade começa a mudar.
A Realidade Por Trás da Utopia
Com o passar dos dias, Jonas percebe que sua sociedade não é perfeita — é apenas anestesiada. Ao remover as emoções, removeu-se também o amor, a compaixão, o livre-arbítrio. As pessoas vivem como máquinas, obedecendo rotinas, sem sentir dor, mas também sem sentir alegria verdadeira. Não há cores, não há música, não há beijos sinceros — tudo é medido, contido, regulamentado.
Aos poucos, Jonas começa a enxergar cores. Literalmente. Seus olhos passam a captar o vermelho de uma maçã, o verde de uma árvore, o azul do céu. Isso simboliza seu despertar, seu rompimento com a rigidez da sociedade. Ele também passa a questionar o uso da linguagem e o sistema de castas. As conversas com o Doador tornam-se cada vez mais existenciais. O velho homem compartilha não apenas memórias, mas também dúvidas, fracassos e o peso de estar sozinho com a verdade.
O Segredo da Liberação
Um dos momentos mais chocantes da história ocorre quando Jonas descobre o verdadeiro significado de “libertação” — termo usado na comunidade para designar o afastamento pacífico de pessoas que não se encaixam no sistema, como recém-nascidos fracos ou idosos. Ele sempre acreditou que libertação era uma cerimônia digna, um envio para outra comunidade.
Mas, ao assistir uma gravação no centro de saúde, Jonas vê seu próprio pai — um cuidador gentil — executar um bebê recém-nascido com uma injeção letal. Sem emoção, sem hesitação. Essa cena dilacera o coração de Jonas. Ele entende, enfim, o custo da Samenez: a supressão da consciência, da moral e do afeto. Não se trata apenas de viver sem dor, mas de viver sem alma.
A Escolha Impossível
Consumido por indignação e amor recém-descoberto, Jonas decide que não pode mais compactuar com aquele sistema. O Doador, embora relutante, concorda. Há muitos anos ele tentou mudar as coisas, quando a última Recebedora — Rosemary, sua própria filha — não suportou a dor das memórias e se suicidou. Desde então, o Doador vive com arrependimento e espera por alguém forte o suficiente para fazer o que ele não conseguiu.
Jonas decide fugir. Seu plano é simples, mas arriscado: atravessar os limites da comunidade e chegar ao “Outro Lado”. Segundo o Doador, quando o Recebedor ultrapassa a fronteira, as memórias que carrega são liberadas de volta ao povo. Isso significa que todos os cidadãos serão subitamente tomados por emoções reais, memórias completas, dores e alegrias que nunca sentiram antes. O caos pode se instalar — mas também a liberdade.
A Fuga e o Bebê Gabriel
A fuga de Jonas é antecipada por um fator urgente: Gabriel, um bebê que está sob os cuidados da família de Jonas, foi declarado inapto e será “liberado”. Incapaz de aceitar essa sentença, Jonas leva o bebê com ele. A dupla parte numa jornada desesperada por florestas, desertos e fronteiras inóspitas. A cada passo, o corpo de Jonas enfraquece, mas sua mente se fortalece.
Durante a jornada, Jonas transmite ao bebê memórias de calor, segurança e amor para mantê-lo vivo. O vínculo entre os dois se torna o coração do filme. É nesse trecho que a história se transforma em uma espécie de epopeia silenciosa — a luta de um jovem por um futuro que ele sequer conhece, mas acredita ser possível.
Um Final Ambíguo e Poético
O desfecho do filme é aberto à interpretação. Jonas, exausto, finalmente avista uma casa iluminada na neve. Ele ouve música, vê uma árvore de Natal, sente calor humano. A câmera se afasta, deixando em dúvida se aquilo é real, uma lembrança, uma alucinação ou a morte. Não há confirmação, apenas a sensação de que algo mudou — e que Jonas cumpriu seu papel.
A beleza do final está em sua incerteza. Para alguns, Jonas morreu tentando. Para outros, ele alcançou a liberdade. Mas o que importa é o ato de resistência, a escolha de não aceitar uma vida sem sentimentos, sem verdade, sem alma. A mensagem do filme é clara: uma sociedade sem dor também é uma sociedade sem humanidade.
Adaptação e Diferenças do Livro
O Doador de Memórias é baseado no livro homônimo de Lois Lowry, publicado em 1993. A obra é considerada um clássico da literatura jovem, ganhadora do prêmio Newbery Medal. A adaptação para o cinema toma algumas liberdades: Jonas, que no livro tem 12 anos, foi envelhecido para 16; o romance com Fiona é aprofundado, e há mais ação no terceiro ato.
Essas mudanças dividiram opiniões. Leitores fiéis criticaram o tom mais comercial do filme, enquanto outros elogiaram o esforço em traduzir uma obra tão introspectiva para o audiovisual. Apesar das críticas mistas, o longa tem méritos próprios e acerta no essencial: provocar reflexão sobre liberdade, controle e o valor da memória.
Um Elenco em Funções-Chave
O elenco de apoio conta com nomes de peso. Jeff Bridges interpreta o Doador com um misto de sabedoria e cansaço emocional. Sua voz rouca e postura lenta traduzem décadas de dor acumulada. Meryl Streep, como a Chefe dos Anciãos, representa o poder opressor e cínico do sistema. Sua frieza contrasta com os questionamentos de Jonas, criando um duelo silencioso entre autoridade e consciência.
A direção de Phillip Noyce mantém o foco na jornada emocional do protagonista, alternando cenas monocromáticas e coloridas para marcar a transição sensorial de Jonas. A fotografia, a trilha sonora e os cenários estéreis reforçam a sensação de um mundo artificial, onde tudo foi calibrado — inclusive o silêncio.
Filosofia, Política e Emoção
Muito mais que uma distopia adolescente, O Doador de Memórias discute conceitos filosóficos profundos: o que é liberdade? O que significa viver plenamente? Vale a pena eliminar a dor se, junto com ela, perdemos o amor, a arte, a beleza? O filme convida o público a pensar nas consequências do controle absoluto e na importância das memórias — mesmo as dolorosas — como base da identidade humana.
A história mostra que esquecer é perigoso. Uma sociedade que apaga seu passado está condenada a viver de forma inerte. Jonas representa o arquétipo do herói trágico, alguém que vê demais e por isso sofre, mas também ilumina os outros com sua coragem.