Capote
Publicado em Domingo,

ator: Philip Seymour Hoffman, Catherine Keener, Clifton Collins Jr., Chris Cooper, Bruce Greenwood, Bob Balaban, Mark Pellegrino, Amy Ryan, Allie Mickelson, Marshall Bell
Um Escritor em Busca da Próxima Obra-Prima
Truman Capote é um nome já consagrado nos círculos literários de Nova York. Autor de sucessos como Breakfast at Tiffany’s, ele é conhecido tanto por sua escrita refinada quanto por seu estilo excêntrico, voz afetada e presença cativante. Quando lê uma pequena nota no jornal sobre um brutal assassinato em uma cidadezinha do Kansas, Capote enxerga ali o que pode ser o material para uma nova obra — algo revolucionário, algo que vá além da ficção. Ele parte imediatamente para Holcomb, acompanhado de sua amiga de infância, a escritora Harper Lee, ainda desconhecida na época.
Chegada ao Kansas
Ao chegar em Holcomb, Capote se depara com uma cidade devastada pelo medo e pela perplexidade. Uma família inteira, os Clutter, foi assassinada em sua própria casa. O crime chocou a comunidade rural, conhecida por ser pacata e sem antecedentes de violência. Capote, com seu modo flamboyant e afetado, choca os moradores. Ele parece deslocado, como uma criatura exótica em um mundo sóbrio e fechado. Mas sua curiosidade, carisma e habilidade para conversar com qualquer um abrem portas. Ele começa a conversar com policiais, vizinhos, repórteres e tenta montar, peça por peça, o quebra-cabeça daquela tragédia.
O Caso Ganha Nomes
Eventualmente, dois homens são presos pelo crime: Perry Smith e Dick Hickock. Ambos têm passados marcados por pobreza, abandono e pequenos crimes. A prisão deles muda o rumo da investigação — e do livro que Capote começa a esboçar. Quando Capote conhece Perry Smith, algo inesperado acontece: o escritor se sente magnetizado por ele. Perry é introspectivo, educado, sonhador, sensível. Muito diferente do frio e arrogante Dick. Capote, movido por uma curiosidade quase obsessiva, começa a visitar os dois na prisão, mas é em Perry que ele se concentra. Surge entre eles uma relação tensa e carregada de ambiguidade.
O Surgimento de um Novo Gênero
À medida que entrevista Perry e investiga os bastidores do crime, Capote percebe que o que está escrevendo é diferente de tudo que já escreveu — ou que alguém já escreveu. Ele não quer apenas contar um crime, mas explorar as camadas humanas por trás dele. Assim nasce o conceito de “non-fiction novel”: uma narrativa literária com rigor jornalístico, algo completamente inovador para a época. Mas para concluir a obra, ele precisa saber o que realmente aconteceu naquela noite. Perry se recusa a contar. E o escritor se vê dividido entre a amizade com o preso e a necessidade da confissão.
O Preço da Confiança
Capote conquista a confiança de Perry com presentes, palavras suaves e empatia calculada. Mas conforme os anos passam e os apelos judiciais se arrastam, a pressão cresce. Capote precisa do fim da história — precisa da execução para poder concluir o livro. Ele começa a omitir informações, manipular emoções, pressionar silenciosamente para que o destino dos assassinos se cumpra. A obra, intitulada A Sangue Frio, se torna seu maior projeto, mas também seu maior fardo. A cada visita à prisão, Capote parece mais cansado, mais confuso, mais dividido entre o homem que escuta e o escritor que escreve.
Harper Lee, a Voz da Consciência
Durante boa parte do processo, Capote conta com o apoio de Harper Lee, que logo depois publicaria seu próprio sucesso, O Sol é para Todos. Harper observa o amigo com uma mistura de admiração e receio. Ela o vê se perder nas próprias manipulações, brincar com a dor alheia como se fosse matéria literária. Harper representa a consciência que Capote tenta abafar — o lembrete de que existe uma linha tênue entre documentar a verdade e explorá-la. Em diversos momentos, ela tenta alertá-lo, mas Capote está cada vez mais cego pelo sucesso que enxerga à frente.
Perry Smith: Homem ou Monstro?
Perry começa a se abrir. Ele conta sobre sua infância terrível, marcada por abusos, abandono e instituições. Fala de sonhos quebrados, da raiva que o corrói. Aos poucos, Capote entende que Perry não é um monstro simples. Ele é complexo, trágico, um produto do mundo que o cercou. Mas também é culpado. O crime contra a família Clutter não foi um acidente, nem um ato isolado — foi brutal, frio, chocante. Capote se vê preso em um dilema: como retratar um assassino com humanidade sem parecer conivente? Como escrever sobre a verdade quando ela é contraditória?
O Tempo se Arrasta
Durante anos, Capote acompanha os apelos legais de Perry e Dick. O livro permanece incompleto. Editores pressionam. O público aguarda. Mas Capote sabe que precisa do desfecho real: a execução. E isso o destrói lentamente. Ele começa a beber mais, dormir menos, viver com ansiedade crescente. Perry percebe que Capote está esperando sua morte. E também percebe que foi usado. A amizade entre os dois se transforma em uma corda esticada, prestes a arrebentar. O tom das visitas muda. Há silêncios, olhares longos, frases ditas e não ditas. O fim se aproxima, e Capote não está pronto.
O Dia Final
Em 1965, Perry e Dick são enforcados. Capote assiste à execução. Ele vê seu protagonista morrer — e com ele, algo dentro de si também se apaga. O livro é finalmente publicado. A Sangue Frio é aclamado como uma obra-prima, um marco na literatura mundial. Mas Capote não comemora. Ele se afasta dos holofotes, mergulha em crises emocionais, afunda no álcool e nunca mais conclui outro livro. A obra que o eternizou também o destruiu. Ele queria mostrar ao mundo o horror do crime, mas o que revelou foi o próprio abismo que o habitava.
Uma Atuação Imortal
Philip Seymour Hoffman encarna Truman Capote com uma precisão devastadora. Sua voz, seus trejeitos, seus silêncios — tudo é milimetricamente construído. Mas mais do que imitação, Hoffman entrega alma. Ele mostra um Capote cheio de contradições: vaidoso e vulnerável, manipulador e sensível, brilhante e frágil. A performance lhe rendeu o Oscar de Melhor Ator, merecidamente. Cada cena carrega uma tensão emocional densa. Há dor por trás do sorriso. Há crueldade por trás da gentileza. Hoffman transforma Capote em uma figura trágica e inesquecível, um gênio que não sobreviveu à própria genialidade.
Direção, Roteiro e Atmosfera
O diretor Bennett Miller constrói o filme com contenção e foco. Nada é exagerado. A fotografia é fria, sóbria, melancólica. O ritmo é lento, mas carregado de tensão. O roteiro de Dan Futterman é elegante e preciso, evitando julgamentos fáceis. A trilha sonora sublinha o drama sem jamais empurrá-lo. Tudo no filme contribui para o clima de ambiguidade moral. Não há heróis. Não há vilões puros. Há apenas pessoas tentando fazer sentido de uma realidade que não oferece respostas. Capote não é apenas uma biografia. É um estudo sobre poder, vaidade, empatia e os limites da arte.
A Escrita Como Arma e Ferida
Capote revela o custo de transformar vidas reais em literatura. Mostra como o escritor, ao buscar a verdade, pode ultrapassar fronteiras éticas. Truman Capote amava as palavras, mas suas palavras machucaram. Ele queria contar uma história verdadeira — e conseguiu. Mas a que preço? O filme levanta questões que ainda ecoam: até onde um artista pode ir? A empatia pode coexistir com a ambição? É possível se envolver com os sujeitos de uma história e ainda assim manter distância? Capote acreditava que sim. Mas sua vida mostrou o contrário.
Um Retrato Inesquecível
Mais do que um filme sobre um escritor, Capote é um retrato profundo de um homem dividido entre o afeto e a ambição, a arte e a ética, a verdade e a dor. É um filme que observa, com paciência e precisão, como o talento pode se tornar maldição. E como, no fim das contas, contar uma história pode ser mais doloroso do que vivê-la. Truman Capote nos deu uma das maiores obras da literatura moderna. Mas o preço que pagou foi alto demais.
Legado e Silêncio
Após A Sangue Frio, Capote nunca mais terminou outro livro. Ele começou Answered Prayers, mas jamais o concluiu. Viveu os últimos anos cercado de festas, depressão e álcool. Morreria em 1984, deixando para trás um legado literário monumental e uma sombra que nunca se dissipou. O filme termina em silêncio, como quem sabe que certas histórias não precisam de ponto final. Elas apenas continuam nos assombrando, nos fazendo pensar, escrever e, talvez, sentir um pouco da dor que carregam.