A Trágica Fome de Erisictão: A Maldição de Deméter
Publicado em Quinta-feira,

personagem: Erisictão, Deméter, Limos, Mnestra, Ninfas
O Orgulhoso Erisictão: Um Homem Contra os Deuses
Em uma Tessália abençoada pelos deuses e pelas colheitas, havia um rei que se recusava a dobrar os joelhos diante do sagrado. Seu nome era Erisictão. Rico, poderoso e cheio de desprezo por tradições religiosas, ele considerava oferendas e cerimônias como bobagens. Onde outros viam bosques sagrados, ele via apenas madeira útil. Onde outros temiam a fúria divina, ele ria com arrogância. Era um homem movido pela ganância e pelo ceticismo. E como tantos antes dele, acreditava que nada poderia tocá-lo — nem mesmo os deuses.
O Bosque de Deméter: Um Lugar Que Não Se Profana
Em sua sede de expandir o palácio, Erisictão ordenou que se cortassem árvores para construir um novo salão. Seus servos hesitaram quando chegaram a um bosque consagrado à deusa Deméter, a deusa da terra, da colheita, da vida. Ali havia uma árvore gigantesca, mais antiga do que os muros de qualquer cidade. Era considerada a morada da deusa, envolta em guirlandas, com oferendas aos seus pés. Mas Erisictão, cego pela arrogância, sacou o machado com as próprias mãos e desferiu o primeiro golpe. A seiva correu vermelha como sangue. O bosque gemeu. E o destino foi selado.
O Sangue da Terra: O Grito de Deméter
A primeira machadada fez tremer o chão. Não era uma árvore comum — ela era viva, consagrada, carregada de poder. No instante em que Erisictão derrubou o tronco sagrado, o próprio ar se tornou denso. Os sacerdotes gritaram, os pássaros fugiram, e as flores murcharam. Uma ninfa da floresta, que morava naquele tronco, soltou um último lamento antes de desaparecer. Deméter, ouvindo o clamor de sua serva, abandonou o Olimpo e desceu à terra, tomada por uma fúria rara até mesmo entre os deuses. E decidiu que Erisictão pagaria — não com a morte, mas com uma fome que nunca cessaria.
A Maldição: A Fome que Nunca Termina
Deméter não apareceu em glória, não lançou raios nem destruiu cidades. Em vez disso, foi sutil e precisa. Chamou Limos, o espírito da fome insaciável, uma entidade que nem os deuses gostam de invocar. Enviou-a silenciosamente até os aposentos de Erisictão durante a noite. Limos entrou como uma névoa e se alojou no coração do rei. Quando Erisictão acordou, algo estava diferente. Ele sentia fome. Uma fome desesperadora. Devorou tudo o que havia em casa. Comeu pães, carnes, queijos. Ainda assim, a fome crescia. Ele comia e comia, mas nunca se saciava. E ali começou sua ruína.
A Riqueza Devorada: A Queda Começa Pelo Estômago
Em poucos dias, os celeiros de Erisictão estavam vazios. Mandou comprar alimentos de outras cidades, mas os estoques não duravam um dia. O rei, cada vez mais desesperado, começou a vender seus cavalos, depois seus bois, depois seus terrenos. Nada era suficiente. Quanto mais comia, mais sua fome aumentava. Começou a devorar comida crua, restos, o que encontrava. Suas roupas tornaram-se trapos, e o palácio virou um armazém de grãos que desapareciam antes mesmo de serem empilhados. Os nobres o abandonaram. Os servos fugiram. Só restou a fome — e um rei que agora parecia um animal.
A Vergonha Máxima: A Venda da Própria Filha
Com todas as posses consumidas, Erisictão teve uma ideia perversa: vender a própria filha, Mnestra, como escrava. Não por crueldade — mas por desespero. A garota foi entregue a um comerciante, e Erisictão comprou mais comida. No entanto, Mnestra não era comum. Ela havia sido amada por Poseidon, que lhe concedera o poder de mudar de forma. Assim que foi levada, transformou-se em um pássaro e voltou para casa. O ciclo se repetiu. O pai a vendia, ela escapava. E cada vez, ele usava o dinheiro para se alimentar. Até mesmo esse truque, porém, começou a falhar.
A Ruína Completa: Quando Nem a Carne Sacia
Sem dinheiro, sem comida, sem dignidade, Erisictão chegou ao ponto mais baixo da existência humana. Começou a devorar animais vivos. Depois, as roupas de couro. Depois, os móveis. Os deuses, que costumam ser implacáveis, nesse caso observavam em silêncio. Sua punição era tão bem arquitetada que não exigia mais intervenção. A fome agora era tudo o que existia dentro dele. Seu corpo emagreceu, mesmo comendo em excesso. Seus olhos ficaram fundos. Seus ossos pareciam cortar a pele. E por fim, sem mais nada ao redor, dizem que começou a devorar a si mesmo.
A Moral do Castigo: Quando a Arrogância Desafia o Sagrado
A história de Erisictão não é apenas uma tragédia grotesca — é um alerta. Em um mundo onde o sagrado se mistura com a terra, destruir o que é divino por ganância é uma sentença de morte lenta. Deméter não destruiu Erisictão com violência, mas com inteligência. Ela sabia que um homem como ele jamais seria tocado por remorso — mas seria consumido pela própria fome. Não apenas uma fome de comida, mas uma fome de posse, de controle, de domínio. E foi justamente essa fome que o devorou.
A Sabedoria de Deméter: Justiça Sem Espetáculo
Diferente de Zeus, que punia com raios, ou de Ares, que esmagava com guerras, Deméter era uma deusa da natureza — e sua justiça era orgânica, natural, silenciosa. A punição de Erisictão é uma lição sobre equilíbrio. O mundo tem seus ritmos, seus espaços, seus limites. O sagrado não pode ser tratado como ferramenta. A terra não pode ser explorada sem consequência. Ao transformar um homem em escravo de seu próprio apetite, Deméter mostrou que a maior dor é aquela que nasce dentro da própria alma.
A Voz Eterna do Mito: Ecoando Através dos Séculos
O mito de Erisictão atravessou gerações não por sua grandiosidade, mas por sua precisão simbólica. Ele fala sobre o consumismo, sobre a falta de respeito à natureza, sobre o ego humano. Hoje, é lembrado em obras que discutem os limites do desejo e da destruição ambiental. Ele é o retrato do homem moderno que destrói florestas por lucro e depois se pergunta por que o mundo parece vazio. A fome de Erisictão virou metáfora da insatisfação crônica da humanidade — e sua história ainda assombra aqueles que ousam agir como deuses.
A Tragédia como Lição: Fome, Culpa e Silêncio
A punição de Erisictão não envolveu multidões, não teve heróis para salvar o dia, nem guerras épicas. Foi uma história sobre colheita — mas colheita de consequências. Quando ele feriu a árvore sagrada, feriu o ciclo da vida. E esse ciclo, como tudo que gira, voltou para ele. A tragédia não foi apenas física — foi moral. Ele perdeu tudo não por azar, mas por decisão. E no fim, seu nome foi esquecido pelos que o temiam, mas lembrado pelos que o estudam. Como advertência. Como limite.
O Desfecho: Silêncio no Lugar de Grito
Ninguém sabe exatamente como Erisictão morreu. Alguns dizem que ele simplesmente se consumiu por dentro. Outros, que enlouqueceu e desapareceu no bosque que ele mesmo destruíra. Mas o mais importante não é o final — é o que ficou. O bosque de Deméter foi regenerado. As ninfas voltaram. A árvore cresceu de novo. A natureza se curou. E o nome de Erisictão virou vento. Porque aqueles que desafiam os deuses por vaidade não deixam legado. Deixam apenas o som do próprio estômago vazio.