As sandálias aladas de Hermes
Publicado em Domingo,

personagem: Hermes, Zeus, Maia, Hefesto, Perseu, Atena, Medusa, Hades, Apolo
Forjadas pelo Vento
As sandálias aladas de Hermes, conhecidas na mitologia grega como talárias, são um dos artefatos mais simbólicos da era clássica. Capazes de conceder velocidade sobre-humana e o poder de voar, essas sandálias se tornaram símbolo do movimento, da comunicação divina e da travessia entre mundos. Mas antes de serem conhecidas como acessórios de Hermes, elas tinham uma origem mágica ligada aos deuses primordiais e aos artífices divinos. Não eram simples calçados — eram manifestações vivas da própria ideia de deslocamento veloz, do pensamento mais rápido que a palavra.
O Presente de Maia
Hermes nasceu da ninfa Maia e de Zeus, em uma gruta no monte Cilene. Poucos dias após seu nascimento, ele já demonstrava inteligência e astúcia fora do comum. Ele roubou o gado de Apolo, inventou a lira com o casco de uma tartaruga e impressionou os deuses com sua ousadia. Como recompensa por sua esperteza e para reconhecer seu valor, Zeus o nomeou mensageiro oficial do Olimpo. Para cumprir essa função, Hermes precisaria de velocidade incomparável. Foi então que lhe foram concedidas as sandálias aladas — criadas por Hefesto e encantadas com bênçãos dos ventos e do éter celeste.
O Artesanato dos Deuses
As sandálias foram forjadas por Hefesto, o deus ferreiro, com couro celestial das vacas solares e ouro etéreo moldado com fios do vento norte. Cada asa costurada aos tornozelos representava não apenas leveza, mas a transição entre mundos: céu, terra e submundo. Algumas versões dizem que as sandálias não eram simples calçados, mas criaturas vivas, feitas de essência elemental, que respondiam apenas ao comando do portador legítimo. Elas grudavam nos pés como tatuagens brilhantes e só podiam ser removidas com rituais específicos.
O Primeiro Voo
Ao calçar as talárias pela primeira vez, Hermes cortou os céus com a velocidade de um relâmpago. O Olimpo vibrou. Ele foi até o Hades, depois voou até os confins do mundo, onde o oceano toca o céu. Nenhum outro deus ou mortal poderia rivalizar com sua rapidez. E essa velocidade não era só física: Hermes passou a ser também o deus das mensagens, do comércio, dos ladrões e dos viajantes. Tudo o que se movia, trafegava, mudava ou era entregue passou a estar sob sua jurisdição. As sandálias fizeram dele um deus de passagem — e do impossível.
Entre o Mundo dos Mortos e o dos Vivos
As talárias também serviam como instrumento psicopompo. Hermes era o único deus autorizado a transitar livremente entre o Olimpo, a Terra e o Tártaro. Era ele quem guiava as almas dos mortos até o Hades. Suas sandálias cortavam as sombras do mundo subterrâneo como se fossem fumaça. Nessa função, as sandálias não eram apenas um meio de transporte — eram também um escudo contra o terror do esquecimento. Com elas, Hermes podia escapar das garras das Erínias, atravessar o rio Estige e levar notícias aos que vagavam sem rumo após a morte.
O Empréstimo a Perseu
Em uma das versões mais famosas do mito de Perseu, o herói filho de Zeus precisa matar a górgona Medusa. Para isso, ele recebe a ajuda de Atena e Hermes. Hermes lhe entrega suas próprias talárias, pois Perseu precisava de velocidade para voar até o extremo oeste, onde Medusa habitava. As sandálias se ajustam aos pés do herói, que alça voo como um cometa. Elas permitem que ele se aproxime e fuja de Medusa sem tocá-la ou olhar diretamente para ela. Sem as sandálias aladas, Perseu jamais teria voltado com a cabeça da górgona.
As Sandálias da Justiça
Mais do que um simples artefato, as talárias simbolizam a agilidade da justiça e da verdade. Hermes era o deus dos juramentos e contratos, e sua velocidade representava a ideia de que a verdade, cedo ou tarde, alcança todos. Elas também são símbolo da palavra falada — rápida, penetrante, incontrolável. Por isso, muitos templos dedicados a Hermes tinham imagens de suas sandálias como ícones da liberdade de expressão e do movimento livre entre ideias e culturas.
A Releitura Filosófica
Filósofos como Platão e posteriormente pensadores estoicos viam as sandálias de Hermes como metáfora para o logos — a razão divina que se move por todo o universo. Assim como Hermes cruzava mundos com elas, o pensamento divino ultrapassava tempo, espaço e matéria. No estoicismo, as talárias representam a harmonia entre ação e palavra. No neoplatonismo, são símbolos da alma que busca retorno à sua origem celeste. Hermes, com suas sandálias, torna-se ponte entre o mundo material e o espiritual.
Magia, Velocidade e Engano
Mas Hermes também era um deus trapaceiro, mestre dos truques, protetor dos ladrões e mercadores. Suas sandálias não eram só velozes: podiam ser silenciosas, furtivas, capazes de tornar o portador invisível ao desejo dos outros. Com elas, Hermes podia roubar uma espada de Ares sem ser visto, ou atravessar o palácio de Hera sem deixar rastros. Isso fez das talárias também um símbolo da ambiguidade. Eram tanto instrumentos de justiça quanto de ilusão. Em mãos erradas, se tornariam armas de caos.
Presença no Mundo Romano
Quando os romanos absorveram a mitologia grega, Hermes tornou-se Mercúrio. As talárias foram mantidas como símbolo essencial do deus mensageiro. Nos mosaicos, estátuas e moedas, Mercúrio aparece sempre com elas nos pés ou com asas nos calcanhares. Na Roma antiga, comerciantes usavam pingentes em forma de talárias como amuletos para garantir bons negócios e rapidez nas negociações. Para os legionários, representavam boa sorte nas viagens e proteção contra emboscadas.
Renascimentos ao Longo dos Séculos
Na Renascença, Hermes e suas sandálias voltaram com força no imaginário alquímico e filosófico. Os ocultistas associaram as talárias à ascensão espiritual e à velocidade do pensamento iluminado. Em pinturas como as de Botticelli e esculturas barrocas, as sandálias tornaram-se ornamentos refinados, às vezes dourados, às vezes translúcidos. Já no século XIX, com o surgimento das ciências modernas, a imagem de Hermes com suas talárias passou a simbolizar a eletricidade, a telegrafia e, depois, as ondas de rádio — meios modernos de transporte da mensagem.
Hermes, o Padrinho da Tecnologia
O símbolo do mensageiro alado foi adotado por empresas de comunicação, logística e transporte. As sandálias aladas viraram logotipo, conceito e referência direta à eficiência e à entrega rápida. Até hoje, o caduceu (bastão de Hermes) com as asas das talárias está presente em insígnias médicas e marcas corporativas. No fundo, isso mostra que a função divina de Hermes — e de suas sandálias — nunca deixou de ser atual: mover o que precisa ser entregue, seja uma mensagem, uma cura ou um produto.
A Fuga no Fim dos Tempos
Algumas versões órficas e mistéricas contam que, quando o mundo estiver prestes a ruir, Hermes será o último deus a deixar a Terra. Suas sandálias o levarão por entre as rachaduras do tempo, e ele desaparecerá como um sopro entre as dimensões. Ele não morrerá — apenas deixará de ser visível. Nessa visão escatológica, as talárias são símbolo da transcendência última: quando tudo falhar, a palavra e o movimento ainda permanecerão. E será Hermes, com suas sandálias, quem carregará a última mensagem do universo.
Outras Interpretações Simbólicas
Na psicanálise junguiana, Hermes representa o arquétipo do “psicopompo” — o condutor entre mundos conscientes e inconscientes. Suas sandálias são interpretadas como ferramentas para atravessar camadas mentais, memórias e arquétipos. No tarot hermético, elas aparecem como asas simbólicas nos arcanos da comunicação e da viagem. Em rituais ocultistas, amuletos em forma de talárias são usados para invocar proteção em travessias espirituais, decisões rápidas ou missões urgentes.
A Perda do Artefato
Não há muitos relatos de outros deuses ou mortais que tenham tentado roubar as talárias de Hermes. Isso porque elas são quase impossíveis de capturar: respondem ao próprio Hermes e a ninguém mais. Dizem que se alguém tentar calçá-las sem permissão, os calcanhares ardem em chamas. Mas em versões mais obscuras da mitologia, há histórias em que Hermes, ferido ou cansado, perde temporariamente suas sandálias, sendo obrigado a cruzar o mundo a pé. Nessas histórias, o universo desacelera, o caos se espalha, e o silêncio toma o lugar das mensagens.
O Legado Imortal
As sandálias aladas de Hermes se tornaram símbolo do impossível tornado real. Representam a fusão entre mente e corpo, entre palavra e ação, entre presença e ausência. Mesmo milênios depois de suas primeiras aparições, elas continuam inspirando escritores, artistas, filósofos e cientistas. Seja como metáfora ou como lenda, elas ainda dizem muito sobre o desejo humano de ir além — de alcançar o inatingível com velocidade, elegância e poder.