Medéia
Publicado em Quinta-feira,
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A Filha de Eetes e Neta de Hélio
Medeia nasceu na distante Cólquida, filha do rei Eetes e neta do próprio deus do sol, Hélio. Desde o início, carregava no sangue o poder do sobrenatural. Sua mãe, em algumas versões, era a oceânide Idía, o que tornava Medeia ainda mais ligada ao mundo místico das águas e dos encantamentos. Desde jovem, ela foi treinada nas artes da feitiçaria, domínio das poções, manipulação de ervas mágicas e encantamentos antigos. Era sacerdotisa da deusa Hécate, e isso não era pouca coisa. A garota que um dia encantaria heróis já era temida por sua própria gente.
Jasão e os Argonautas Chegam à Cólquida
Do outro lado do mundo grego, em Iolco, Jasão partia com os Argonautas em uma jornada insana: conquistar o velocino de ouro, símbolo de poder e prosperidade, guardado por Eetes na Cólquida. A tripulação incluía grandes heróis: Héracles, Orfeu, Castor, Pólux, Atalanta. Quando Jasão chegou à corte de Eetes, ele não foi recebido com hostilidade — mas o rei impôs desafios brutais. Ele só entregaria o velocino se Jasão arasse um campo com touros cuspindo fogo, semeasse dentes de dragão e enfrentasse os guerreiros que nascessem deles. Era uma sentença de morte disfarçada de missão heróica.
Amor Feiticeiro: Medeia Enfeitiçada
Foi então que o destino mostrou seu lado mais irônico. A jovem feiticeira Medeia viu Jasão e foi dominada por Eros, que a atingiu com uma flecha do amor a mando de Hera e Afrodite. Enfeitiçada, Medeia sentiu um amor incontrolável, que a levaria a trair tudo que conhecia: sua pátria, sua família e sua posição como sacerdotisa. Ela ofereceu ajuda a Jasão. Entregou-lhe um unguento mágico que o tornaria invulnerável ao fogo dos touros e deu-lhe as instruções para derrotar os homens nascidos dos dentes do dragão. Tudo por amor.
O Roubo do Velocino e a Fuga Sangrenta
Mesmo após vencer os desafios, Eetes se recusou a entregar o velocino. Medeia agiu de novo. Ela conduziu Jasão até o bosque sagrado onde o velocino era guardado por um dragão gigante que nunca dormia. Com seus feitiços, Medeia adormeceu a criatura, e o casal fugiu com o tesouro dourado. Eetes ficou furioso e partiu em perseguição. Então Medeia cometeu seu primeiro ato irreversível: ela matou seu próprio irmão, Absirto, esquartejando-o e jogando seus pedaços no mar, obrigando o pai a parar o navio para recolher o corpo. Foi assim que ela e Jasão escaparam.
O Casamento e o Exílio em Corinto
Atravessando o mundo, os amantes chegaram à Grécia. Em Iolco, Jasão pretendia recuperar o trono usurpado por Pélias, mas não conseguiu. Medeia, sem hesitar, convenceu as filhas de Pélias a matarem o próprio pai, prometendo rejuvenescê-lo com magia. A promessa era falsa, e o crime levou à expulsão de Jasão e Medeia de Iolco. Os dois seguiram para Corinto, onde foram recebidos pelo rei Creonte. Ali viveram por anos como marido e mulher, tiveram dois filhos e pareceram, por um tempo, felizes. Mas a felicidade não sobrevive à ambição.
A Traição de Jasão
Jasão, com sede de poder e prestígio, decidiu romper com Medeia. Sem consultar a esposa, prometeu-se em casamento à filha de Creonte, Glauce (ou Creúsa, em algumas versões). O casamento o aproximaria do trono coríntio. Quando Medeia soube, foi devastada. Sentiu o peso da traição não apenas como esposa, mas como mulher que havia abandonado tudo por um homem. E não ficou calada. Enfrentou Jasão publicamente, amaldiçoou sua nova união e jurou vingança. Jasão tentou justificar-se dizendo que era por segurança, mas o mal já estava feito.
A Vingança Começa: Um Presente Mortal
Medeia foi banida de Corinto por Creonte, que temia seus poderes. Ela pediu apenas um dia para preparar a partida. Foi o tempo necessário para montar o mais terrível plano de vingança da mitologia grega. Fingindo aceitar a decisão de Jasão, ela enviou um presente para Glauce: um vestido de noiva e uma coroa. Ambos estavam envenenados com magia. Assim que Glauce vestiu o traje, o fogo mágico consumiu seu corpo. Creonte, ao tentar salvá-la, também foi envolvido pelas chamas. Em um só gesto, Medeia matou a rival e o sogro traidor.
O Infanticídio: O Ponto Sem Volta
Mas a vingança de Medeia não terminou ali. Ela sabia que Jasão sofreria mais se perdesse não apenas a nova esposa, mas também os filhos. Em um ato que dividiu os antigos e choca até hoje, Medeia matou os dois filhos que tivera com Jasão. Algumas versões dizem que ela o fez com as próprias mãos; outras, que os entregou a aliados para executarem o ato. Em todos os relatos, o infanticídio é retratado como a culminação da dor e da loucura. Medeia não queria apenas punir Jasão: queria arrancar-lhe a alma.
A Fuga de Medeia: Um Carro Dourado e um Vento dos Céus
Após os assassinatos, Jasão correu ao palácio, mas chegou tarde demais. Medeia já havia fugido em um carro dourado puxado por dragões alados, presente de seu avô Hélio. A imagem de Medeia sobrevoando Corinto com o vento levantando seus cabelos, os olhos em brasa, os filhos mortos atrás de si, tornou-se um dos momentos mais icônicos da mitologia grega. Nenhum deus a puniu. Nenhuma cidade ousou caçá-la. Ela era agora uma entidade além da moral comum.
Medeia em Atenas: A Rainha Assassina
Medeia partiu para Atenas, onde foi acolhida pelo rei Egeu, pai de Teseu. Casou-se com ele e teve um filho chamado Medo. Mas seu destino de destruição não havia cessado. Quando Teseu chegou à cidade, Egeu não o reconheceu, e Medeia, temendo que ele ameaçasse o futuro de seu próprio filho, tentou envenená-lo. No último momento, Egeu reconheceu Teseu e impediu o crime. Descoberta e expulsa de Atenas, Medeia fugiu novamente, agora para a longínqua Ásia, onde fundaria novos mitos e legados.
O Legado de Medo e o Fim da Jornada
Medeia levou seu filho Medo para as terras da Média, onde ele se tornou rei e deu origem ao povo medo, ancestral dos persas. Assim, mesmo manchada de sangue, a linhagem de Medeia continuou. Ela desapareceu dos registros, tornando-se lenda, sombra, mito. Alguns dizem que foi elevada à imortalidade por Hécate. Outros afirmam que terminou os dias em solidão, entre feitiços e memórias, vagando como um espectro de si mesma. Mas uma coisa é certa: Medeia nunca foi esquecida.
A Medeia de Eurípides
Séculos depois, Eurípides imortalizou a história em sua tragédia “Medeia”, apresentada em 431 a.C. A peça focava na dor, na inteligência, no orgulho ferido da protagonista. Diferente de outras figuras trágicas femininas da Grécia, Medeia não era uma vítima passiva, mas uma agente ativa do próprio destino. Fria, calculista, brilhante — ela rompeu com todas as convenções. Foi adorada por uns, odiada por outros, temida por todos. Era mulher, mãe, esposa, traída, bruxa, e assassina. Eurípides a pintou como alguém maior que a própria dor.
Medeia no Imaginário Ocidental
A figura de Medeia ultrapassou a Grécia. Foi tema de poemas romanos, óperas renascentistas, pinturas barrocas, romances modernos. Sua imagem oscilava entre heroína trágica e monstro vingativo. Psicólogos a estudaram como símbolo da “mãe devoradora”, enquanto feministas a resgataram como exemplo de resistência e agência feminina. Ao lado de Antígona, ela se tornou uma das personagens femininas mais influentes da tradição clássica, sempre desafiando as fronteiras da moralidade.
A Mulher que Enfrentou os Deuses
Medeia ousou desafiar reis, deuses, maridos, pais e leis. Não seguiu o papel esperado de uma princesa, de uma esposa, de uma mãe. Seu crime é inesquecível, mas sua força também. Não implorou por perdão. Não se arrependeu. Enfrentou o mundo com os olhos de quem viu a traição no coração de um herói. Talvez por isso ainda seja lembrada: porque onde todos viram fraqueza, ela mostrou poder.
O Amor como Gatilho do Caos
O amor que Medeia sentiu por Jasão não era ternura, era febre. Não foi domesticado, mas canalizado para destruir. Em sua história, o amor é o que move o mundo — e também o que o desfaz. Seu coração, uma vez entregue, se tornou a arma mais perigosa do mundo grego. Em vez de redenção, ela escolheu o abismo. E talvez seja isso que a torna tão moderna, tão real.